sexta-feira, novembro 25, 2005

Menina do circo II

Tinha a cara húmida e os olhos desbotados. O seu corpo estava quente como uma botija em lençóis frios. Deitada sobre os seus joelhos, o seu corpo enroscado cabia todo. Apesar do barulho quem prestasse atenção podia ouvir a sua respiração ofegante. Mas só um prestava atenção: o que a tinha assim ao colo como uma criança. Apeteceu-lhe ficar assim, indefinidamente ausente, mas era preciso partir. As luzes iam-se apagando aos poucos, enquanto a pequena multidão se desfazia muito lentamente sem trocar o caminho de suas casas.
Era muito tarde. Alguém disse que o carro já tinha chegado. Ele agarrou nela como num embrulho frágil e deitou-a no banco de trás. Foi também ele que fechou a porta. Alguém gritou o nome dela do escuro e o carro pôs-se em movimento.
A primeira à direita, a terceira à esquerda e depois entraram numa floresta de eucaliptos, silenciosa, durante alguns quilómetros. De vez em quando ele espreitava pelo espelho retrovisor, que tinha ajustado, para a poder ver, imóvel, estendida sobre o banco, e depois voltava a olhar para a frente descobrindo a estrada iluminada pela luz branca dos faróis. Aliás de noite nada tem cor, a não ser os sonhos dela que ele não podia ter a certeza de querer adivinhar.
A certa altura ele começou a assobiar muito baixinho. Voltou a calar-se e depois chamou pelo nome dela, mas sem que ela o ouvisse. Só para dizer o nome dela. Nisto ocorreu-lhe, por absurdo, a ideia de que alguém tinha morrido e que transportava consigo esse cadáver do qual era necessário desfazer-se urgentemente. Quase sentiu medo. Foi então, bruscamente, que uma mão lhe aflorou a nuca e ouviu uma voz que dizia: "Meu menino, meu menino".


Pedro Paixão
A noiva judia