segunda-feira, abril 29, 2013

Tolentino de Mendonça e o Cântico dos Cânticos

Ah és bela minha amada és tão bela teus olhos são pombas por detrás de teu véu
teu cabelo um rebanho de cabras que descem do monte Galaad teus dentes rebanho de ovelhas tosquiadas que sobem do banho todas geraram suas crias nenhuma há estéril entre elas como fita escarlate teus lábios que formosa é tua boca tuas faces são metades de romãs por detrás de teu véu teu pescoço é a torre de David erguida sobre troféus
dela pendem mil escudos todos broquéis de valorosos
teus seios são dois filhotes gémeos de uma gazela
que se apascentam entre os lírios
antes que o dia expire e as sombras se alonguem
irei por mim ao monte da mirra e à colina do incenso
ah és bela minha amiga defeito não há em ti
Comigo do Líbano esposa vem comigo do Líbano
descerás do cimo de Amaná do cume de Senir e do Hermon
dos esconderijos dos leões dos barrancos dos leopardos
roubaste-me o coração minha irmã minha esposa roubaste-me o coração com um só dos teus olhares
com uma só conta dos teus colares
que doces tuas carícias minha irmã minha noiva melhores tuas carícias do que vinho
a fragrância de teus perfumes do que todos os odores
teus lábios são favos escorrendo ó esposa mel e leite sob a tua língua
o aroma dos teus vestidos é o aroma do Líbano.

És jardim fechado minha irmã minha esposa um jardim fechado uma fonte selada
as tuas plantas um bosque de romãzeiras com frutos deliciosos
com cipros e nardos nardo e açafrão
cálamo e canela e toda a sorte de árvores de incenso
mirra e aloés e os bálsamos escolhidos
a fonte do jardim uma cisterna de água viva que jorra desde o Líbano
levanta-te vento norte vem vento do sul soprai no meu jardim espalhem os seus perfumes
entra o meu amado no seu jardim e come seus frutos doces

(in «Cântico dos Cânticos»,
tradução do hebraico, introdução e notas de José Tolentino Mendonça*,
com ilustrações de Ilda David, Edição bilingue, Cotovia 1997)
 José Tolentino Mendonça (Machico, 1965). Capelão da Universidade Católica de Lisboa até o ano de 2000, quando foi para Roma, onde se doutorou, tendo regressado a Lisboa, onde dá aulas na Faculdade de Teologia.
"Os Dias Contados", 1990; - poesia
"As Estratégias do Desejo: Um Discurso Bíblico sobre a Sexualidade",1994 - ensaio
"Longe Não Sabia", 1997 - poesia
"A que Distância Deixaste o Coração", 1998 - poesia
"Baldios", 1999 - poesia
"De igual para igual" (2001) - poesia
"A estrada branca" (2005). - poesia
Em 2005 publicou a peça de teatro "Perdoar Helena", já representada pelos Artistas Unidos, e a sua tese de doutoramento, "A Construção de Jesus".
Sobre a sua vocação religiosa confessou que "Foi uma coisa de juventude, inconsequente, imprudente, inesperada, que eu procuro manter. Ser padre é um nomadismo interior constante. É aceitar a pobreza como condição. E a pobreza é uma coisa chata de viver. É achar que isso pode ser uma forma de dizer alguma coisa ao seu tempo".
Tolentino Mendonça é autor da elogiada tradução do "Cântico dos Cânticos" (1997), publicou vários ensaios, escreveu teatro e está a traduzir os "Salmos".