segunda-feira, junho 15, 2015

CÂNTICO DAS CRIATURAS , de S. Francisco de Assis

Altíssimo, Omnipotente, Bom Senhor
Teus são o Louvor, a Glória, a Honra e toda a Bênção.

Louvado sejas, meu Senhor, com todas as Tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol, que clareia o dia e que, com a sua luz, nos ilumina.
Ele é belo e radiante, com grande esplendor; de Ti, Altíssimo, é a imagem.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, que no céu formaste, claras. preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor. pelo irmão vento, pelo ar e pelas nuvens, pelo sereno e por todo o tempo em que dás sustento às Tuas criaturas.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, útil e humilde, preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, com o qual iluminas a noite. Ele é belo e alegre, vigoroso e forte.

Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa, produz frutos diversos, flores e ervas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam pelo Teu amor e suportam as enfermidades e tribulações.

Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar. 

Louvai todos e bendizei o meu Senhor!
Dai-Lhe graças e servi-O com grande humildade!


segunda-feira, junho 08, 2015

Fragmentos de um roteiro de Lisboa

ARRABALDES DE LISBOA in Archivo pittoresco, TOMO VI 1863

Como todas as grandes capitaes, Lisboa, desde que rompeu seu primeiro cinto de muralhas, tem ido absorvendo em si as povoações visinhas. Assim vemos hoje no coração da cidade os sitios onde outrora avultavam villa Quente, Valverde, villa Gallega, villa nova de Andrade e outras mais. N'esse tempo, os terrenos que constituem actualmente os seu suburbios, apenas contavam de longe em longe alguns logarejos e varias quintas. A importancia, povoação, e aformoseamentos dos arrabaldes de Lisboa datam do terremoto de 1755. Depois d'esta catastrophe, muitas familias da cidade ahi se foram estabelecer, umas levadas do terror, não querendo mais habitar no seio de grandes povoações; outras guiadas pela necessidade de se acolherem ás suas fazendas, como unica taboa de salvação depois do naufragio de suas fortunas. Desta epocha por diante começou a edificação em grande escala. Aquelles logarejos, pela maior parte, foram-se ligando uns aos outros; e em breve se uniram á propria capital por uma longa fileira de palacios, casas e jardins, que pouco a pouco foram guarnecendo as estradas por onde se communicava com as visinhas aldeias.

ARRABALDES DO NORTE
Bemfica, Calhariz, Porcalhota, Bellas e Queluz
Saindo pelas barreiras de S. Sebastião da Pedreira, estrada de Bemfica, a uns tres kilometros da praça do Commercio, e em linha recta com a mesma, chega-se aos mais lindos suburbios de Lisboa, situados no ameno e extensissimo valle que vae correndo para o norte em direcção á serra de Cintra. *
Logo ao sair das barreiras está a
QUINTA DE PALHAVÃ.
— Esta propriedade, ainda não ha muitos annos, era celebre pela espessura de seus bosques, pela grandeza dos jardins e preciosa collecção das suas plantas, pela abundancia de estatuas e vasos de marmore que a decoravam, dentre as quaes algumas sobresaiam por excellencia darte, e finalmente pela bondade e frescura de suas aguas. Esta quinta e palacio foram fundados na segunda metade do seculo xvii por D. Luiz Lobo da Silveira, segundo conde de Sarzedas. Seu filho, D. Rodrigo da Silveira, terceiro conde do mesmo titulo, fez-lhe muitos augmentos, entre outros o grande portão da entrada principal, oude avultam as armas desta antiga e illustre familia, que vindo a extinguir-se no seculo passado, reverteram os seus bens para os condes da Ericeira, creados posteriormente marquezes de Louriçal; e pela extincção desta casa succederam nos seus morgados os srs. condes de Lumiares.
No palacio de Palhavã morreu em 7 de dezembro de 1663 a rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboya, filha do duque de Nemours, e mulher delrei D. Pedro n, tendo ido para alli convalescer. Serviu tambem aquelle palacio de residencia aos principes D. Antonio, D. Gaspar, e D. José, filhos naturaes mas reconhecidos del-rei D. João v, (o segundo veiu a ser arcebispo de Braga, e o terceiro inquisidor geral de Lisboa), aos quaes o povo appellidava meninos de Palhavã, epitheto que lhes conservou ainda mesmo na velhice.
Durante a longa residencia d'estes principes em Palhavã chegou a quinta ao seu maior esplendor, e mais esmerada cultura. Adornavam-se os seus jardins com a mais rica e bella collecção de plantas exoticas que então havia na capital. Depois da morte dos principes começou a decadencia da quinta, que augmentou posteriormente à invasão franceza de 1808. Porém a grande ruina d'esta propriedade foi causada pelas luctas durante o cerco de Lisboa de 1833, na guerra da restauração da liberdade. Foi theatro de um mortifero combate na tarde e noite de 5 de setembro daquelle anno. Palacio e quinta tudo foi assolado. Desde então progrediu a devastação até ao ponto de reduzirem a terras de trigo os seus bosques, pomares, e jardins. Passado tempo alguns dos seus vasos e as figuras de marmore mais pequenas vieram ornar a varanda do jardim que se prolonga com o palacio do sr. conde de Lumiares, ao Passeio Publico. Porém ainda lá se conservam algumas estatuas colossaes, erguendo-se em meio de cearas, e lagos ornados de figuras, tudo feito em Italia, havendo entre estas obras de arte algumas produceões do celebre esculptor Bernini. Felizmente esta propriedade foi comprada ha pouco pelos srs. condes de Azambuja, que se propõem a restaurar o palacio e quinta, conservando ao primeiro todas as suas feições primitivas.

Continuando pela mesma estrada encontra-se pouco adiante um edificio arruinado, dividindo os dois caminhos que levam a Bemfíca e ao Pinheiro. Era um palacio dos duques de Cadaval, onde se celebraram as pomposas festas do casamento do terceiro duque daquelle titulo, D. Jaime de Mello, com a princeza D. Luiza, filha bastarda e reconhecida del-rei D. Pedro II. 0 terremoto de 1755 destruiu quasi completamente o palacio e a quinta annexa, não offerecendo hoje coisa que interesse aos curiosos, senão esta recordação historica.
Proseguindo chega-se ao sitio de Sete-Rios, donde partem para a direita a estrada das Larangeiras e para a esquerda a de Campolide. Este nome estendia-se até ao largo do Rato em tempos del-rei D. Fernando em que teve começo, derivando-se dos combates que alli houve por occasião do cerco de Lisboa pelas tropas de Castella. Chamava-se então Campo da Lide. Continuando a seguir a estrada de Sete-Rios para Bemfica avulta do lado direito a QUINTA DAS LARANGEIRAS.




— Foi fundada esta magnifica propriedade na segunda metade do seculo passado pelo primeiro barão de Quintella, pae do sr. conde do Farrobo. O risco do palacio e planta da quinta e jardins foram feitos pelo padre Bartholomeu Quintella, da congregação do oratorio, e tio do fundador. Porém as obras mais grandiosas d'esta quinta e seus principaes aformoseamentos, é tudo devido ao actual proprietario o sr. Joaquim Pedro Quintella, primeiro conde do Farrobo. No palacio, cujas salas são decoradas com gosto e magnificencia, existe uma boa collecção de quadros, de auctores nacionaes e estrangeiros, e outros objectos de arte. O theatro contiguo, incendiado ha pouco, era de muita elegancia e riqueza, da mesma sorte que o grande salão de baile e mais camarins que o cercam. Procede-se actualmente á reedificação. Na quinta ha diversos jardins, mui lindas estufas, um labyrintho, lagos de differentes feitios e grandeza, diversos jogos, um amphitheatro de animaes ferozes, um viveiro de aves de recreio, uma casa ou chalet suisso no meio de uma mattasinha, varias estatuas, bustos, e vasos de marmore, e mirantes, e casas de regalo de invenções variadissimas.
' Náo juntámos n esta noticia uma vista d'este palacio porque o estado das obras, que n'elle so fazem ao presente, obstam a que se possa tirar um desenho com perfeição. Dal-a-hemos logo que seja possível.

A quinta das Larangeiras está situada entre as estradas de Bemfica e das Larangeiras, a cinco kilometros de distancia da Praça do Commercio. O palacio e o theatro deitam para a segunda estrada, que vae á-Luz, Telheiras, Carnide, etc. Sobre a primeira abremse magnificos porticos de gradaria de ferro, ornados com figuras de marmore, e com dois esbeltos pavilhões, com suas columnas e estatuas tambem de marmore. Dão entrada para uma rua magestosa, mui larga e comprida, orlada de arvoredo tapetada de relva perennemente viçosa, com um formoso lago, e um elevado obelisco de marmore branco e côr de rosa. Remata esta rua nos jardins do palacio, ficando este em perfeita correspondencia com os referidos porticos e pavilhões.
A nossa gravura representa a metade desta rua para o lado da estrada de Bemfica.




Quasi em frente dos porticos e pavilhões da quinta das Larangeiras vem desembocar um caminho estreito, que conduz á alameda de S. Domingos de Bemfica por entre as quintas de sua alteza a sra. infanta D. Isabel Maria, e do sr. marquez de Fronteira.

A ALAMEDA DE S. DOMINGOS DE BEMFICA é pequena, mas agradavel, porque a povôam arvores copadas e annosas, e porque a guarnecem, por um lado o palacio e jardim d'aquelle fidalgo, e por outro os arvoredos da quinta de sua alteza, que fazem sombra a uma fonte publica, e á entrada principal do seu palacio, e em seguida a egreja e extincto convento dos dominicos. É celebre este logar das cercanias de Lisboa pela feira de arraial que ahi se faz durante o mez de maio, com grande concurrencia de povo aos domingos.

Deu origem a esta feira o seguinte caso. Pouco tempo depois del-rei D. João I ter feito doação dos seus paços de Bemfica á ordem de S. Domingos, encarregou este soberano um commerciante, que ia partir para Allemanha, de lhe mandar fazer n'esse paiz uma imagem de S. Domingos esculpida em madeira, para a offerecer á egreja do novo.convento. Partiu o mercador, e na volta, vindo por mar, levantou-se tão rijo temporal, que se julgou perdido o navio. No meio da consternação geral lembrou-se o mercador de recorrer á intercessão do patriarcha da ordem dominicana. Traz para a tolda a santa imagem: mostra-a aos marinheiros, e todos oram com devoção. D'ahi a pouco bonançou o mar, e em breve surgiu o navio a salvamento no porto de Lisboa. Correu logo a noticia do acontecimento por toda a cidade, que se despovoou para ver e acompanhar a imagem em procissão, desde o logar do desembarque até ao convento de S. Domingos de Bemfica. Por muitos dias consecutivos concorreu alli immensa multidão de fieis. Como o caso succedeu em um domingo de maio, nos annos seguintes foram consagrados todos os domingos d'esse mez a festejar o santo, e commemorar o milagre.

O CONVENTO DE S. DOMINGOS. — Pertenceu á ordem dos prégadores, foi fundado por el-rei D. João i, a instancias do seu privado e chanceller-mór João das Regras.
Correndo o anno de 1399 doou aquelle soberano para o dito fim os paços de Bemfica com a quinta annexa, que desde o reinado de D. Diniz serviam de casa de campo aos nossos monarchas. N'aquelle mesmo anno se estabeleceram os frades dominicos nestes paços, e com o auxilio regio construiram uma egreja de modesta fabrica e mui limitadas proporções.
Fizeram-se pelo decurso do tempo muitas obras de reconstrucção e acrescentamento no tenyjlo e no convento; porém nos principios do seculo XVII todo o edificio ameaçava ruina. Procedeu-se então a uma reedificação quasi geral por diligencias de fr. João de Vasconcellos, prior que era d'este convento. No dia 29 de junho de 1624 lançou este prelado a primeira pedra nos alicerces da nova egreja. Claustro, casa de capitulo, refeitorio e dormitorio, foram tambem feitos de novo. Do primeiro edificio só ficou a sacristia e o côro. O terremoto de 1755 lançou por terra a egreja e convento, que logo depois foram reedificados.
Pelos annos de 1818 ateou-sc no convento um violento incendio, que esteve quasi a ponto de reduzir tudo a cinzas. Na livraria, que ardeu completamente, perderam-se muitos livros raros, e manuscriptos de bastante apreço.
Pela extincção das ordens religiosas ficou por muito tempo sem culto a egreja, e o convento condemnado u uma ruina certa. A ambos valeu a solicitude de sua alteza, a sra. infanta D. Isabel Maria, restituindo o culto ao templo, e comprando o convento, que desde então tem servido de abrigo á pobreza, e tambem serviu de asilo e casa de educação á infancia.
li memoravel este convento nos annaes de Portugal por quatro grandes vultos bistoricos, que o illustraram na vida com o brilho de eminentes virtudes, e de subido engenho, ou que o honraram na morte com o precioso deposito de suas venerandas cinzas.
São esses quatro vultos D. fr. Bartholomeu dos Martyres, fr. Luiz de Sousa, D. João de Castro, e João das Regras.
O primeiro, decorado com a mitra primacial de Braga, e que tão nobre e sabiamente sustentou no concilio tridentino os interesses e dignidade da religião e da patria, foi conventual deste mosteiro.
O segundo, que na vida secular assombrou os inimigos da nossa independência com um acto de heroico patriotismo, e que no claustro edificou a todos como exemplar das virtudes christãs, eternisando ao mesmo tempo o seu nome como um dos nossos escriptores mais elegantes, mais correctos e melifluos, viveu, morreu, e jaz nesta casa religiosa.
O terceiro, ao cabo de uma existencia gloriosa e honradissima, alli foi repousar o corpo, vasio d'aquella alma immensamente grande, que encheu toda a Asia com a fama das suas acções, e com o respeito e prestigio do nome portuguez.
O quarto, finalmente, o eloquente orador, que decidiu as cortes de Coimbra de 1385 a cingir a fronte do mestre de Aviz com a coroa que o direito da legitimidade dava aos filhos de D. Pedro I e da desventurada Ignez de Castro, então presos em Castella pelo rei desse paiz que pretendia assenhorear-se do throno de seu fallecido sogro, el-rei D. Fernando de Portugal; João d' Aregas, ou das Regras, o mais celebre jurisconsulto portuguez do seculo xv, tambem alli descança.
A egreja perdeu na ultima reedificação quasi todos os vestigios de antiguidade, sem adquirir coisa alguma que a recommende como monumento artistico.
O mausoleo de João das Regras levantava-se antigamente no meio da egreja; mas quando esta se reconstruiu no seculo xvii foi mudado para junto da porta do templo, á direita de quem nelle entra. É de marmore branco, e assenta sobre quatro leões.




   A caixa tem por unico adorno oito escudos, representando todos o brasão de armas do chanceller de D. João i, cuja figura em alto relevo está deitada sobre a tampa. A estatua tem vestes talares: na cabeça o barrete doutoral, e ao lado o estoque, insignia de cavalleiro. Aos pés está um cão, emblema da fidelidade, posto como em guarda e vigia. Em volta da tampa lé-se em caracteres gothicos o seguinte lettreiro: Aqui jaz João das Regras Cavaleiro Doutor em Leys, privado tíelRei D. João fundador deste mosteiro, finou tres dias do mez de Maio era de 1442 (corresponde ao anno do nascimento de Christo de 1404).
João das Regras, largamente recompensado em honras e bens pelo mestre de Aviz, foi progenitor dos condes de Monsanto, depois marquezes de Cascaes, cuja familia se extinguiu no seculo passado.
A cerca do convento foi vendida pelo estado: é hoje propriedade particular. Não merecia que se fallasse n'ella, se fr. Luiz de Sousa a não celebrara na sua historia de S. Domingos, descrevendo-a com tão vivas e finas côres, que mais parece obra de pincel que de penna. A fonte do Satyro, que elle engranece e exalta; a outra fonte de que tanto gostava o cardeal rei pela frialdade das aguas; os párreiraes, em que, no dizer d'elle—fazem toucas as voltas, e frescura das parras; colaqres de pedraria as uvas, segundo o tempo e as cores dellas, já topazios, já rubis, primeiro esmeraldas — tudo isto ainda lá está, mais ou menos bem conservado. O quadro porém ostenta-se tão humilde e mesquinho a quem o contempla ao natural, quão bello e grandioso a quem o lê na chronica dominicana. Mas não falta n'esta a verdade; naquelle é que falta essa imaginação fecunda, que por meio das pompas do estilo, e das galas da poesia, derramava em tudo quanto tocava nova graça, mais fulgor e formosura.

Voltando a estrada de Bemfica, logo acima da quinta das Larangeiras, mas do lado opposto, está a

EGREJA DO EXTINCTO CONVENTO DE SANTO ANTONIO DA CONVALECENÇA, que pertenceu aos religiosos capuchos da provincia de Santo Antonio. Teve principio em 1640 como casa de saude dos ditos frades, a qual chamavam Convalecença, nome que depois se acrescentou ao do convento, e que tambem se ficou alternando com o do sitio, que é o da Cruz da Pedra. O convento e egreja foram reedificados e augmentados em 1746. Pela extincção das ordens religiosas foi vendido o primeiro a João Gomes da Costa, que o transformou em uma casa nobre para sua residencia no verão, e da cerca fez uma bonita quinta, mais de regalo que de rendimento. Hoje é de seus herdeiros.
A egreja está bem conservada, e no exercicio do culto. O seu lindo cruzeiro de variados lavores vé-se ao presente dentro da quinta das Larangeiras, e proximo das grades quasi fronteiras ao templo. Fez acquisição d'elle o sr. conde do Farrobo durante o tempo em que a egreja, em seguida á suppressão do convento, esteve fechada, e como em abandono.
Proseguindo pela estrada, pouco mais adiante d'aquella egreja, e desse mesmo lado, encontra-se a

QUINTA DE ANTONIO LODI. — É uma vivenda pequena mas linda, composta de excellente casa, curiosamente ornada; de jardins e bosque com uma grande lagôa, e muita variedade de objectos darte e construcções pittorescas, como estatuas, bustos, um museu, tanques, mirantes, casas de fresco, de banho, e de jogos, e uma ermida construida á maneira de uma cathedral gothica. Do segundo andar do mirante, que se ergue no fundo da quinta, sobre um grande lago, goza-se a vista de uma formosissima paizagem. Formam o centro do quadro as quintas e palacios da serenissima senhora infanta D. Isabel Maria, dos srs. marquezes de Fronteira, e do sr. Welhouse, e a egreja e cerca do extincto convento dominicano. Para a esquerda vê-se Lisboa como que espreitando os arrabaldes do cimo dos seus ultimos montes. Para a direita é tudo verdores d'essa longa cadéa de jardins e pomares que povoam o valle de Bemfica, limitando o horisonte d'esse lado a poetica serrania de Cintra. Em nossa opinião não ha nos suburbios de Lisboa perspectiva mais bella, aprazivel e pittoresca do que esta.
' A gravura que publicamos a pag. 89 mostra apenas uma parte diminuta d'aquelle extenso e variadissimo panorama.

D'este sitio vae correndo a estrada de Bemfica, como até aqui, sempre por entre quintas e casas de campo mais ou menos ricas, até á egreja parochial.
As mais notaveis por belleza de edificios e de jardins são as seguintes, pela ordem em que vão orlando a estrada:

QUINTA DO sr. JOÃO DA SILVA CARVALHO. — Foi feita no seculo passado pelo negociante estrangeiro Moller, e ha poucos annos comprada e reedificada pelo digno par do reino acima nomeado, filho do benemerito conselheiro de estado José da Silva Carvalho, um dos fundadores da liberdade constitucional dos portuguezes em 1820, e um tambem dos que mais concorreram em 1833 para a restauração d'essa mesma liberdade, e do throno da sra. D. Maria ii, e para a inauguração da nova era de progresso civilisador em Portugal. Singularisa-se esta quinta pela collecção magnifica de plantas exoticas que possue, e por um gabinete photographico perfeitamente organisado pelo proprietario, o qual cultiva com proficiencia este ramo da arte.


QUINTA DO BEAU SÉJOUR. — 

Esta graciosa residencia foi fundada ha uns treze annos pela fallecida viscondessa da Regaleira. A casa, que se vê representada em a nossa gravura, está construida n'aquelle gosto moderno, elegante e singelo, das casas de campo inglezas e francezas, a que os primeiros chamam cottage, Sobresae no jardim a todas as mais obras darte um soberbo leão de bronze, de proporções naturaes, e cinzelado com bastante perfeição, o qual está collocado sobre um pedestal de marmore. Pertence agora esta propriedade ao sr. barão da Gloria.

QUINTA DA ALFARROBEIRA. — Acha-se situada sobre o caminho que conduz ao logar do Calhariz, mas a poucos metros de distancia da estrada de Bemfica. Edificou esta magnifica propriedade, na primeira metade do seculo passado, para sua residencia, Frederico Ludovici, architecto do palacio real de Mafra. O palacio e capella estão construidos com aquelle estilo e riqueza que logo á primeira vista denunciam a epocha de D. João v, em que se erigiram. Sua alteza a infanta D. Isabel Maria, sendo regente do reino, na ausencia d'el-rei D. Pedro iv, foi passar nesta quinta o verão de 1827 para se restabelecer de uma gráve doença que tivera. Era então senhor d'esta propriedade um neto do fundador. Actualmente é do sr. Manuel de Campos Pereira.
Deixando de parte muitas outras quintas, dignas de menção se não foramos um pouco apressados, chega-se á
EGREJA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO, freguezia do logar de Bemfica.

 É a melhor egreja parochial dos arrabaldes de Lisboa. Foi construida no principio deste seculo junto da egreja antiga, que era pequena e de mesquinha construcção, e que ainda existe ao lado da capella-mór da actual parochia. O novo templo é grande e magestoso. Decoram-n'o interiormente excellentes marmores de côres, polidos ou lavrados com bem acabadas esculpturas. Exteriormente é de uma architectura regular, de boas proporções, mas destituida de belleza. Falta-lhe no frontispicio para estar completo uma das duas torres dos sinos. Fizeram-se as obras á custa de esmolas. A frente da egreja está voltada para oeste, e o adro cae sobre a estrada real. A vista que damos em gravura foi tirada de umas terras d'além do rio que fertilisa e corta todo o valle de Bemfica. Este rio é o que vae banhar a cerca do extincto convento de S. Domingos e a quinta da sra. infanta D. Isabel Maria.
Um pouco antes de se chegar á egreja de Nossa Senhora do Amparo, junto ao chafariz de Bemfica, corre para o lado de oeste a estrada que vae dar ao logar de Calhariz, passando pelo sitio da Buraca, onde está a
QUINTA DA BURACA. — É uma linda vivenda, com boa casa e bonitos jardins, obra do fallecido negociante João Antonio Lopes Pastor. Durante a penosa enfermidade que poz termo, na Ilha da Madeira, á existencia de S. A. I. a sra. D. Maria Amelia, foi esta princeza, em companhia de sua augusta mãe, i procurar algum lenitivo em seus padecimentos n'esta quinta de singular amenidade e socego.
No logar de Calhariz, pequena povoação com sua ermida, situada em terreno elevado, e de mui salubres ares, acha-se a

QUINTA CHAMADA VULGARMENTE DO PERES, porque foi um negociante d'este appellido quem a fez, ou ampliou e aformoseou no primeiro quartel d'este seculo. É uma rica propriedade, tanto pela nobreza dos edificios, disposição e ornatos dos jardins, e corpulencia das arvores silvestres que a assombram, como pela sua extensão, e pela abundancia e variedade das suas producções. Pertenceu ao barão de Rio Tinto, que lhe fez consideraveis melhoramentos. Hoje é do sr. José Iglesias, abastado commerciante e capitalista desta cidade.
O palacio (esta quinta serviu de residencia a sua alteza a sra. infanta D. Anna de Jesus Maria, e ao sr. duque de Loulé, então marquez, depois do seu consorcio desde novembro de 1827 até 3 de fevereiro de 1828, em que partiram para o estrangeiro.

Junto ao extincto convento de S. Domingos, mas em edificio separado, posto que sc communiquem interiormente, está a CAPELLA DOS CASTROS


 a qual fica situada no adro da egreja de S. Domingos, em frente desta. Foi fundada com a invocação de Corpus Christi na primeira metade do seculo xvii por D. Francisco de Castro, bispo inquisidor geral, neto do iIlustre vice-rei da India, D. João de Castro, destinando-a para seu jazigo, e de sua familia.
Não prima esta capella em bellezas de architectura, porque é bastantemente singela: mas é grandiosa, tanto pela sua vastidão, que lhe dá proporções de uma boa egreja, como tambem pelos materiaes de que é construida, pois que desde o pavimento, que é de marmore de córes, até á abobada, que é de excellente cantaria, toda a sua fabrica é de pedra bem lavrada.
Tem a capella um só altar, por detraz do qual está o côro. Entre as seis columnas, que decoram o altar, vêem-se sobre peanhas seis custodias com reliquias de santos, tres de cada lado.
No pavilhão ou baldaquino, que faz cobertura ao sacrario, avultam duas imagens, de Nossa Senhora e de S. Domingos, que, além da veneração que lhes é devida, são de subido apreço como objecto archeologico, e como tropheo de uma grande victoria que enramou de loiros as armas portuguezas.


PALACIO E QUINTA DA SERENISSIMA SRA. INFANTA D. ISABEL MARIA.



Fundou esta bella residencia no seculo passado mr. Gerardo Devisme, abastado negociante britannico da praça de Lisboa. Fez a planta do palacio e quinta, e dirigiu as obras o architecto Ignacio de Oliveira Bernardes.
Devisme ornou a quinta com muitas estatuas de marmore, e plantas raras, sobresaindo formosissimas arvores exoticas; e decorou o palacio com variada copia de objectos darte, mormente quadros a oleo, de que era amador. Ao cabo de annos, vindo a enfastiar-se, não d'esta sua propriedade tão encantadora, mas sim do paiz por causa de alguns desgostos que nelle teve, vendeu o palacio e quinta a D. Pedro de Lencastre, terceiro marquez de Abrantes. Este fidalgo conservou por muito tempo a quinta no melhor estado possivel; porém nos ultimos annos da sua longa vida deixou-a cair em decadencia. Cinco annos depois da sua morte, seu neto, tambem D. Pedro de Lencastre, 5º marquez de Abrantes, fez venda desta propriedade em 1834 a sua alteza real a infanta D. Isabel Maria.
Esta princeza estabeleceu alli a sua residencia ordinaria, e fez alguns melhoramentos nos jardins, e obras consideraveis no palacio, augmentando-o para o lado do pateo, onde fica a entrada principal. O palacio tinha duas fachadas para este pateo, construiuse-lhe pois uma terceira, e fechou-se o quarto lado com uma gradaria e portico de ferro.
A frente mais nobre e elegante do edificio estende-se sobre um jardim, rematando nas extremidades em dois corpos, que resaltam do central, e aos quaes fazem coroa duas esbeltas cupulas envidraçadas. Uma d estas dá luz á capella, que é muito rica, resplandecendo o oiro em variadissimos relevos sobre fundo branco por todas as paredes, altar e tecto. A munificencia de sua alteza correspondeu nas alfaias á riqueza com que decorou a sua capella.
A outra cupula pertence á grande sala de recepção, para a qual fazem como de tribunas as janellas do segundo andar. Esta sala é magnifica e de muita belleza, e acha-se ricamente guarnecida.
Encerra tambem este palacio um curioso museu, principiado por mr. Devisme, e augmentado pelo terceiro marquez de Abrantes, e por sua alteza.
A quinta compõe-se de varios jardins adornados com estatuas e lagos de marmore: de ruas de bosque, onde as magnolias e outras arvores de folhagem persistente fazem toldo de perenne verdura; e de pomares e hortas, com seus tanques e viveiros de aves, com um rio que divide a quinta, encanado e represado para servir de lago a uma cascata que sobre elle se levanta a muita altura, offerecendo na sua base passagem como ponte, de uma para outra margem, e no alto um mirante de vistas deliciosas.
Infelizmente padeceu esta quinta ha poucos annos grande devastação nas suas arvores quasi seculares, ordenada com o fim de dar á lavoira alguns metros de terreno, onde anteriormente não rompia o sol a espessura do bosque.
A vista que publicámos em gravura , e que representa esta linda quinta, encaixilhando com os seus arvoredos, de uma parte o palacio, e da outra a egreja do extincto convento dominicano, foi tirada do mirante do fundo da quinta do sr. Antonio Lodi, d'onde se goza um dos mais apraziveis panoramas dos arrabaldes de Lisboa.


PALACIO E QUINTA DO SR. MARQUEZ DE FRONTEIRA.
 — Foi edificada esta soberba residencia no seculo xvii por D. João de Mascarenhas, primeiro marquez de Fronteira, e segundo conde da Torre. O palacio está construido no gosto da architectura então em voga na Italia. Tem tres fachadas principaes, todas difierentes em forma e ornatos, todas de bastante nobreza e originalidade. A escada é sumptuosa, e as salas são grandes, e ostentam nas paredes muitos quadros pintados a oleo, em que se véem diversos retratos de familia, avultando entre todos, pelas dimensões do painel, e pela gloria do individuo, o retrato de D. Fernando de Mascarenhas, primeiro conde da Torre.
 Está collocado este quadro na sala chamada das batalhas, onde se véem representados os combates em que se distinguiram a sua pericia e valor durante as guerras da restauração de 1640.
O frontispicio da capella, e a fachada do palacio, que lhe fica contigua, estão decorados com graciosos ornamentos, de um genero exquisito e delicado. Deitam para um jardim plantado no gosto moderno.
A gravura que juntámos a pag. 97 mostra a frente do palacio para o jardim principal, E mui vasto este jardim, e conserva a sua antiga planta. É notavel pelos seus cinco lagos de marmore, pelas muitas estatuas que o guarnecem, e mais ainda pela famosa varanda dos reis, com o seu grande lago com estatuas, grutas, balaustradas e vasos de marmore, assim denominada por se adornar com os bustos em marmore de todos os nossos reis até D. João vi. A parte restante da quinta compõe-se de pomares e hortas.
• Pertence actualmente esta quinta ao sr. D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, setimo marquez de Fronteira, quinto marquez de Alorna, oitavo conde da Torre, setimo conde de Assuiuar, mordomo-mór de S. M. a Rainha D. Maria Pia de Saboya, e um dos typos mais completos da antiga aristocracia portuguesa.
VILHENA BARROSA.



in Archivo Pittoresco

quarta-feira, maio 20, 2015

Fontória 2004

Eram 3 da manhã e eu estava tão aflita para fazer chichi que pedi ao porteiro do Fontória para me deixar ir à casa de banho. Ele conhece-me de longa data, porque paro no sinal vermelho ali em frente à porta quando saio já tarde da minha baiuca preferida e lhe digo sempre boa noite, e respondeu-me que sim.

E lá desci eu, pela primeira vez em muitos anos, as escadas daquela tão famosa casa de putas, enquanto o som da música manhosa de dança subia escadas acima ao meu encontro. Atravessei a sala de estar fazendo esforço para habituar os olhos à meia luz e não tropeçar em nada, senti os homes olhar-me como quem diz "olha esta é bem boua" (em estrangeiro, claro está!, que estávamos em noites do Euro – e para puta do Fontória eu nem estava mal... ), cumprimentei os empregados portugueses, que me olharam um bocado admirados, e lá descobri a casa de banho das mulheres, ao fundo do balcão à esquerda, por trás de um biombo.

Entrei e vi uma mulheraça linda, nova, alta, loira e de leste, que esperava pela sua vez enquanto se retocava ao espelho. Disse-lhe que era bonita, e era mesmo. Ela agradeceu e sorriu, sem me olhar nos olhos. E ficámos as duas à espera. 


Quando a outra saiu pareceu-me portuguesa, porque não se notava sotaque nenhum. Tinha os cabelos escuros e era mais velha. Depois de um silêncio em que olhei para o espelho, ainda à espera da minha vez, foi ela que começou a falar comigo, assim como se eu fosse uma colega, e me disse "Tive que apanhar os cabelos, que o raio do homem parece que me quer lavar as orelhas... A ver se o consigo entusiasmar...". E encolheu os ombros.

Quando saí já as duas estavam de volta ao serviço, na sala principal.
Dei um toque de despedida no ombro da do cabelo apanhado, como se lhe desse um beijo.

Eu gosto de putas.
De putas verdadeiras, das profissionais.
Mistura de compaixão e carinho.
Parecido com o que sinto pelos reclusos que visito de tempos a tempos, nas festas do Natal.

E apeteceu-me compartilhar isto convosco.
(Mesmo que não ande por aí ninguém...)

Lisboa, 18junho 2004