domingo, fevereiro 26, 2017

Lisboa cor de rosa e cinza


Nasci em Junho de 1956 na Estrada de A-da-Maia, em Benfica. Em Agosto de 58 mudámo-nos para o Bairro de Santa Cruz. Eu tinha dois anos, a minha irmã 9 meses e o meu irmão viria a nascer em 1960 nessa casa cor de rosa - o 17 da rua 8.

Lisboa foi para mim, durante muitos anos, aquele Bairro de famílias com filhos, pequena aldeia abrigada e segura, a nossa ilha. E a Mata, manchazinha de sombras ali mesmo ao pé de casa... Lisboa eram os jogos da cabra-cega, do elástico e da macaca, as ameixas, os limões e os alperces, os miúdos à chinchada pela calada da noite e o meu pai a espantá-los como pardais, o homem do pitrolino com o seu cavalo e carroça de traquitanas, belo cigano de chapéu de aba larga ai Jesus das criadas (naquele tempo havia criadas, raparigas que moravam connosco como família), o velhote dos gelados no triciclo motorizado há frutas ou chocolate, cone de bolacha normal ou especial e chocmint!, o senhor Vitorino com as hortaliças e sempre uma cenoura para oferecer ao “amigalhaço”, o menino lá da casa, jogos de futebol de portão a portão muda aos 5 acaba aos 10 (e o menino brilhava), limpa-chaminés enfarruscados, grandes cordas e escadotes como na Mary Poppins, uma mulher robusta vendia o peixe à porta da cozinha, canasta pesada e grandes saias compridas, o homem do leite, o jarro maior e medidas de quarto, de meio, de litro, e os pregões!! “Há praí traaapos, jornaais e garraafas para vendeer?”, “Há figuiinhos maduriinhos! Quem quer fiiigos quem quer almoçaaar?!”, o “Amoladooore!” de flauta de pã, dizia a minha mãe que o amolador anunciava a chuva, e nós “um dó li tá cara de amendoá um secreto coloreto um dó li tá quem está livre livre está!” e “um aviãozinho militar atirou uma bomba ao ar a que terra foi parar?”, e “que linda falua que lá vem lá vem/ é uma falua que vem de Belém/ que vem de Belém que vem de Benfica/ é uma falua que lá vem cá fica./ vou pedir ao senhor barqueiro que me deixe passar/tenho filhos pequeninos não os posso sustentar...” Às vezes rebanhos de ovelhas passavam lá no Bairro. Havia quintas. Na Estrada de Benfica havia eléctricos de duas carruagens e autocarros verdes, de dois andares, com entrada atrás. Eu lá em cima a espreitar por cima dos muros das quintas da Estrada de Benfica...


2007

as cabras do mar

os gritos das gaivotas
as cabras do mar
contrastam com o piar aflito dos pequenos franganitos
empilhados em caixotes
uns em cima dos outros
numa paragem inesperada a caminho do matadouro
(o condutor teve que parar o camião para se refrescar, estava tanto calor... )

nunca mais me esquecerei dos milhões de escravos

as cabras do mar voam em pequenos bandos e gritam
oh como são livres e felizes, as cabras do mar!


figueira da foz, 14 de julho 2012